Já fazem oito anos, meu irmão
Ideologia do Incra dá de
ombros para a morte
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Da Folha
Fazenda
Lagoinhas, município de Planaltina (GO). Passava de 22h. De um lado estavam os
integrantes da família Amaral, dona da terra. De outro, lavradores sem terra.
Entre eles, 30 metros de breu. Penumbra que injetava eletricidade à atmosfera.
Súbito,
ouviram-se tiros. Deu-se a tragédia. Uma bala calibre 38 perfurou a cabeça de
Luiz Carlos Becker Amaral. Levado ao hospital, morreu antes que a destreza dos
médicos pudesse ser testada. Aconteceu em 2 de dezembro de 2003.
Na
véspera, cerca de 40 lavradores sem terra haviam invadido a Lagoinhas. A
chegada da polícia, na madrugada de 2 para 3 de dezembro, evidenciava que a
coisa desandara. José Ailton da Silva, um dos líderes do grupamento de
sem-terra, saiu de fininho. Refugiou-se nos arredores de Brasília.
Chamam-no
Zé Barriga. Foi apontado em inquérito policial como autor do tiro fatal.
Companheiros de invasão reconheceram que ele fez dois disparos. Teria usado,
porém, uma arma artesanal, incompatível com a bitola da bala que trespassou o
crânio de Becker Amaral.
Decretou-se
a prisão de Zé Barriga. Caçado, não foi encontrado. Entregou-se em 9 de
dezembro. Interrogado, disse que "sabe pegar em armas". Com as
curtas, "não sabe atirar bem". Com as longas, "sabe atirar mais
ou menos".
Já
possuiu um revólver 38. Mas no conflito da Lagoinhas teria operado espingarda
que chamou de "bate-bucha". É alimentada com pólvora, socada cano
abaixo com uma vareta e detonada por espoletas. Alegou ter puxado o gatilho em
resposta ao fogo inimigo. Negou que houvesse alvejado Becker Amaral.
Instado a
entregar a arma, Zé Barriga disse que a abandonara na fazenda, ao lado de uma
bolsa preta, no pé de uma árvore. Indicou o local aos policiais. Encontrou-se
apenas a árvore, um pequizeiro. Nem sinal da arma.
Em batida
no local em que se encontrava Vilma Rodrigues, mulher de Zé Barriga, a polícia
recolheu a bolsa preta. Guardava um carregador de celular, pólvora, espoletas e
fogos de artifício. Nada da arma.
Vilma
declarou: a) recolheu a bolsa a pedido do marido; b) dois de seus filhos estavam
com Zé Barriga "na hora que ele atirou"; c) não foi capaz de nominar
os filhos nem de precisar o horário dos disparos.
Em 9 de
fevereiro, a promotora Maria Aparecida Amorim denunciou Zé Barriga. Sustenta
que, "mirando a vítima [...], efetuou-lhe um disparo, causa de sua
morte".
Ainda
preso, o sem-terra conta com o apoio do Incra. Um suporte expresso em
correspondências anexadas ao processo.
Em 11 de
dezembro de 2003, quando o corpo de Luiz Carlos Becker Amaral ainda se
acomodava à cova, a Ouvidoria Agrária do Incra endereçou carta à polícia de
Goiás. Pediu "a realização de perícia para constatar o tipo de arma que
provocou a morte". Sob pena de "nulidade" do processo.
Na carta,
assinada pelo ouvidor agrário Gercino José da Silva Filho, o Incra aceita como
verdadeira a versão de que Zé Barriga manuseou arma artesanal. O que "gera
dúvida quanto à autoria do crime".
Em 5 de
janeiro, a Ouvidoria do Incra endereçou carta a Alcides Moacir Dumoncel Amaral.
É proprietário da Lagoinhas, tio do assassinado. Assina a correspondência Maria
de Oliveira, braço direito do ouvidor Gercino Filho.
Maria
agiu a pedido da direção da Associação Bibolândia. É uma dissidência do MST.
Reúne os sem-terra que invadiram a Lagoinhas. Os lavradores diziam-se
perseguidos pelo dono da fazenda. Na carta, a Ouvidoria Agrária lembra ao
fazendeiro as suas obrigações. Entre elas o "aproveitamento racional e
adequado" da terra.
O texto
traz nas entrelinhas a ameaça de desapropriação. O curioso é que os arquivos do
Incra guardam laudo técnico que atesta: a) a Lagoinhas "apresenta grau de
utilização e eficiência [...] em patamar próximo dos limites legais
[...]"; b) "56,81% das terras não têm aptidão para o desenvolvimento
da agricultura familiar". O documento desaconselha vivamente a
desapropriação.
No mesmo
dia em que escreveu ao fazendeiro, Maria de Oliveira enviou novo ofício à
polícia goiana. Reitera o pedido de "perícia para constatar o tipo de arma
que causou a morte" de Becker Amaral. Como se a arma do crime estivesse
disponível.
O
repórter tentou dar ouvidos à Ouvidoria do Incra. Discou para Gercino Filho.
Não obteve resposta. Sua atribuição legal é a mediação de conflitos. Deveria
zelar pelos interesses sociais dos sem-terra e também pelos direitos dos
proprietários rurais.
O
cabeçalho dos ofícios do Incra traz a logomarca da gestão Lula: "Brasil,
um país de todos". Supostamente abrigada sob o guarda-chuva do vocábulo
"todos", a família Amaral não recebeu de Brasília nem mesmo
manifestação de condolências.
A pedido
da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Zé Barriga é defendido pela
Defensoria Pública da União, órgão do Ministério da Justiça. Argumenta-se que
não há provas cabais da autoria do assassinato. Nos próximos dias, será feita a
reconstituição do crime.Josafá Alves Cordeiro, amigo de Zé Barriga,
vice-presidente da Associação Bibolândia e organizador da invasão à Fazenda
Lagoinhas, antecipa o resultado: "Vai ficar demonstrado que eles [os
integrantes da família Amaral] atiraram neles mesmos".
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